Narcisos e perversos
Levado ao extremo, o narcisismo fica longe do belo:
pode virar doença e eliminar vidas
Donald Trump humilhou muita gente
na televisão enquanto popularizava o bordão “you’re fired” (está demitido), no
programa “O Aprendiz”. Hoje candidato à presidência dos Estados Unidos, ele se
mantém fiel à falta de empatia com propostas como a de um muro para barrar
imigrantes, que seria pago pelo vizinho México. Fã de construções grandiosas,
tem um império: US$ 4,5 bilhões na avaliação da
“Forbes”, US$ 10 bilhões segundo ele mesmo. É vaidoso e
gosta de se gabar, tanto que muitos o consideram narcisista. Pior: um
narcisista perverso, como decretaram
psicólogos ouvidos pela revista “Vanity Fair” e como
sugere a petição online que defende
uma avaliação psicológica do candidato. Ficar sob o comando de alguém com
transtorno de personalidade narcisista é realmente um problema, mas não se
restringe ao eleitorado dos EUA: esse mal pode estar muito, muito perto de
você.
Todos conhecem gente com alguns
dos traços que caracterizam um narcisista perverso – para não dizer nós mesmos.
Estão alinhados com a sociedade do “eu”, que é calcada na ambição, conquista,
autoconfiança, autopromoção e autoestima. E na qual temos, literalmente sempre
à mão, uma ferramenta para registrar e mostrar à plateia nossos feitos, que
serão curtidos, comentados, compartilhados. Tudo isso engloba o narcisismo, mas
não necessariamente a doença: ela só existe quando cinco ou mais das
características descritas no DSM-5 (sigla em inglês para Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais) se manifestam de forma consistente a partir
da idade adulta. Sendo assim, aquele chefe que tanto se acha pode ser só um
babaca. Ou, de fato, um narcisista perverso, caso manipule pessoas e situações
a seu favor, acredite ser essencial para a existência da empresa (ou do
mercado) e humilhe quem está a sua volta para garantir destaque. Segundo o
manual, a incidência do problema pode ser maior entre os homens.
"Para essas pessoas, o céu é
o limite. Elas vão acabar com tudo o que significa a existência do outro, e o
efeito é devastador: uma das relações mais destruidoras que pode existir para
qualquer ser humano”, resume a psicóloga Silvia Malamud , especializada em
tratar vítimas de narcisistas perversos. É tão grave que, ao comparar
características desses agressores com as de um psicopata, a especialista cita
poucas diferenças. Basicamente, o psicopata não desiste do alvo, enquanto o
narcisista pode substituí-lo – não sem antes resistir ou abusar da manipulação.
“As ações do perverso também podem levar à morte. Ele vai eliminar tudo o que
constituiu o outro: sua moral, sua estética, seu trabalho e por aí vai. É comum
a vida da vítima entrar em colapso”.
Agradeça se nunca experimentou
esse extremo do narcisismo nas relações pessoais. No texto “Uma Violência Silenciosa: Considerações Sobre a
Perversão Narcísica”, o filósofo e psicanalista André Martins explica
que, nessa situação, o fortalecimento do ego do agressor passa pela
desvalorização do outro. A violência é velada, não assumida e negada pelo narcisista,
que dá um jeito de inverter papéis e fazer o outro se sentir culpado.
“Embora sempre tenha existido, essa perversão talvez encontre na cultura
contemporânea um terreno fértil, mais comum do que poderíamos supor. Não é
explícita, mas imiscui-se no dia a dia, nas pequenas relações, nos pequenos
atos, tendendo a passar despercebida”, explica, reforçando que a violência não
é necessariamente física e pode estender-se por um longo tempo.
O terreno fértil ao qual Martins
se refere passa pela crença de que é possível existir satisfação o tempo todo.
Em caso de revés, haverá sempre um atalho para sentir-se melhor - seja com
viagens, intervenções estéticas e, vá lá, filtros do Instagram. “Podemos pensar
no narcisismo como a busca da plenitude total, sem a existência de limites para
a satisfação. Mas não há como estar totalmente satisfeito sempre, isso é
ficção”, explica o psicanalista e professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo) Hemir Barição. “As pessoas estão fascinadas com soluções
que parecem livrá-las de um certo mal-estar. É como matar a fome com
gelatina: engana, mas por pouco tempo.”
Em longo prazo, diz o livro “The
Narcissism Epidemic” (“A Epidemia do Narcisismo” em tradução livre), esses
valores trazem consequências destruidoras: falsos ricos (atolados em dívidas),
falsas beldades (padrão atingido via plásticas e procedimentos estéticos),
falsos atletas (usuários de anabolizantes), falsas celebridades (reveladas por
reality shows e redes sociais), falsa sensação de que se é especial (educação
das crianças focada na autoestima) e falsos amigos (são centenas deles, mas só
no ambiente virtual). “Toda essa fantasia pode fazer nos sentirmos bem, mas,
infelizmente, a verdade sempre vence. Os empréstimos hipotecários e a resultante
crise financeira [de 2008] são apenas uma demonstração de como, no fim, desejos
pretensiosos acabam colidindo com a realidade”, afirma a obra.
A situação fica ainda mais grave
quando pessoas viram objetos para garantir a plenitude dos narcisistas: é a “objetificação”
do outro, o ato ilusório de enxergá-lo como uma ponte para o bem-estar. No
âmbito pessoal, se já houver uma pré-disposição, isso cria a relação de
opressor e oprimido que caracteriza o narcisismo perverso. Na esfera pública,
acredita Barição, o que se vê é uma sociedade sem culpa nem vergonha.
“Este é um dos sinais mais assustadores do funcionamento da nossa cultura.
Esses dois afetos têm a ver com o outro e sua ausência mostra que o enxergamos
como um objeto”, diz. “Como consequência, as pessoas ficam cínicas e
nunca acham que precisam reparar nada ou se desculpar por algo que fizeram. É a
lógica do ‘todo mundo faz, funciona assim’, tão recorrente na política.”
Você deve conhecer
relacionamentos que envolvam narcisistas perversos, embora o diagnóstico só
possa ser feito por especialistas. Na prática, não é o que acontece, e há
muitos relatos de pessoas que dizem ter sido vítimas deles – os depoimentos
frequentemente vêm de filhos ou da parte oprimida num relacionamento amoroso.
Na França, onde muito se fala sobre o tema, o transtorno acompanha a discussão
sobre assédio moral no ambiente de trabalho.
As histórias são semelhantes e
fazem parecer que os agressores seguem um manual. São atraentes e precisam
estar sempre em destaque – a vítima, ofuscada, servirá de “régua” para o
narcisista medir seu sucesso em áreas distintas. Nada está bom o bastante,
nunca. O que lhes falta de empatia existe de sobra na capacidade de
argumentação. O importante é manterem a posição dominante. Para isso, recorrem
à ameaça de abandono, à sedação emocional (assumem uma personalidade adorável
para retomar o controle) e ao gaslighting (distorções ou invenções para fazer a
vítima duvidar dela mesma, chegando a questionar sua sanidade).
Se parece existir um código de
conduta para os narcisistas perversos, o mesmo pode se dizer de seus alvos. Não
são pessoas frágeis, pelo contrário. André Martins as descreve como fortes,
cheias de vida e propensas a enxergar a violência como um desafio para
transformar o outro. “O paradoxo é que ela se enreda justamente por julgar-se
forte e capaz de superar o sofrimento vindo da agressão injusta [...]. Quanto
mais o agressor se torna maldoso em suas palavras, mais a vítima fica
solícita, se adapta, cede, se restringe.”
Trata-se de um acordo inconsciente
entre as partes, que funciona em looping. O agressor dá a entender que ama a
vítima. Seu comportamento alterna entre seduzi-la e agredi-la – na segunda
opção, usa macetes de manipulação para criar um consenso de que foi “porque
mereceu”. O oprimido vê na relação uma forma de suprir carências e se considera
capaz de, um dia quem sabe, ganhar o tão esperado reconhecimento. “Quando é
bom, é bom demais. Quando é ruim, é o pior dos mundos. O perverso narcisista
identifica qual a carência daquela pessoa para tirar pedaços, como uma erva
daninha”, compara Silvia.
Pela forma sutil e manipuladora
como a situação se desenvolve, o alvo pode demorar muito para identificar o
problema – se acontece, é porque o absurdo da situação chegou ao limite. O
narcisista, desprovido de empatia e imerso numa cultura em que “se achar” está
liberado, raramente tem dimensão da crueldade de seus atos – até por
isso os depoimentos sobre a agressão vêm da outra parte. No livro
“Sequestradores de Alma, Guia de Sobrevivência”, a autora Silvia Malamud conta
a história de Vera (nome fictício), uma paciente que acredita ter sido salva
por um câncer de mama. Foi só durante o tratamento do tumor que ela percebeu o
comportamento narcisista do parceiro com quem se relacionou por 16 anos: ele
chegou a reclamar explicitamente que a doença da mulher o havia tirado do
centro das atenções.
Em uma rara exceção, um estudo realizado em 2011 por quatro universidades
norte-americanas traçou o perfil de uma mulher de 85 anos
diagnosticada, via testes e entrevistas, como narcisista perversa. A conclusão
é que as relações pessoais serviam apenas como combustível para alimentar seu
narcisismo, e o sentimento de superioridade impedia a criação de laços afetivos.
Mas a falsa convicção de ter uma “vida incrível” não a deixava perceber
qualquer problema de relacionamento. “Nunca amei ninguém como a mim mesma”,
disse a idosa, mãe de uma filha com quem, à época do estudo, mantinha contato
frequente.
Não há um consenso sobre a causa
do transtorno, mas o ambiente e forma de criação podem favorecer seu
surgimento. No caso da idosa, os pesquisadores apontam grande instabilidade
familiar: ela perdeu o pai quando criança e, aos 18 anos, já tinha vivido com a
mãe e dois irmãos em 15 casas. Nesse período, também estudou em 20 escolas
diferentes. Nem todos em situação semelhante desenvolverão a perversão, claro.
Mas a cultura contemporânea não condena atitudes compatíveis com a patologia:
se houver uma pré-disposição para ela existir, o ambiente se mostrará
favorável.
O tratamento da perversão é
considerado muito desafiador, se não impossível, porque o narcisista não tem
consciência do problema – afinal, tudo nele é incrível. Dificilmente procura
ajuda psicológica e, quando o faz, é para convencer a vítima que está disposto
a mudar. A tendência é abandonar rapidamente o tratamento, não sem antes
tentar convencer que é o verdadeiro injustiçado. Sendo assim, a
responsabilidade pelo fim dos abusos fica a cargo dos alvos, o que torna a
situação ainda mais cruel: cabe a eles, já fragilizados, identificar os
mecanismos de controle e encontrar maneiras para se livrar do problema. Uma
mudança certamente desafiadora, mas não menos do que tentar sempre agradar a um
dominador.
Apesar de assustadores, os casos
de perversão são exceção. Regra é o narcisismo do cotidiano, no qual estamos
imersos, que podemos suavizar se adotarmos uma abordagem diferente diante da
insatisfação. “Se outras gerações eram muito conformistas, a tolerância agora é
muito baixa. O nível de sofrimento que as pessoas suportam é pequeno. É preciso
resistir a esse movimento quase compulsivo frente a um conflito, de recorrer
rapidamente a uma saída, e examinar o desconforto. Saber dosá-lo para ver até
onde ele pode nos levar e não apenas encontrar paliativos”, afirma Barição. É
entender que gelatina não mata fome. E rever o tão disseminado estilo de vida
narcisista, que pode levar a consequências muito mais graves do que a enxurrada
de selfies em sua timeline.
Fonte: site uol.com.br